Taxa sobre as celuloses

26-01-2020

A criação de uma taxa sobre as celuloses e outros produtos florestais foi aprovada pelo Parlamento, mas ficou na gaveta do executivo anterior. Esta taxa seria destinada a financiar uma parte do Fundo Florestal Permanente, que na prática, entre outras coisas, serviria para recuperar zonas para espécies autóctones, criar mosaico florestal e prevenir incêndios. No presente Orçamento do Estado, a taxa em questão ficou novamente 'esquecida', o que provocou o reencendimento do debate em torno deste assunto. Seguem-se duas opiniões sobre o tema. 

Taxa das celuloses: uma escandalosa guerra no Governo

Daniel Deusdado 17 Janeiro 2020 - 10:33 Diário de Notícias

"Causa algum choque ler o editorial do Público de ontem sobre um tema crucial para o país - a floresta. Como assinalei há duas semanas, tudo começa com uma notícia da jornalista Helena Pereira, no próprio Público, a 30 de Dezembro, sobre o Governo se ter esquecido de criar uma taxa sobre as indústrias intensivas da floresta. A medida visaria financiar uma parte do Fundo Florestal Permanente cujo objetivo é dotar o país de um verdadeiro mosaico florestal e contribuir para os custos de prevenção contra incêndios.

A tal taxa, aprovada no Parlamento, ficou na gaveta. Explicação: em 2019 o ministro Capoulas Santos ainda tinha a seu cargo a floresta, mas resolveu nada fazer. Entretanto a Secretaria de Estado das Florestas passou para o Ministério do Ambiente e, nos dossiers de transição entre ministérios, o assunto não consta. Paradoxal, mas verdadeiro.

Mais paradoxal é a explicação do Público sobre a posição do ministro do Ambiente, Matos Fernandes: "Em vez de assumir o disparate da medida e de reconhecer que o seu antecessor, Luís Capoulas, fez-se vítima de amnésia selectiva para que caísse da agenda do Governo, não: disse que ainda se ia a tempo de se avançar com a dita taxa".

Manuel Carvalho conhece bem Capoulas Santos e quando avança com esta segurança sobre a "amnésia selectiva" do ex-ministro da Agricultura, ficam poucas dúvidas sobre a verdade/desfaçatez do caso. Acrescenta, aliás: "O seu "esquecimento" foi uma forma de se furtar ao disparate", diz Manuel Carvalho. Ou seja, uma guerra surda no seio do primeiro Governo PS. Uma ofensa encapotada ao primeiro-ministro e ao Parlamento.

Sobra agora a questão seguinte - sabermos se deve ou não existir uma taxa sobre estas indústrias que vá buscar dinheiro para minimizar o impacto das monoculturas florestais no território. O título do editorial de ontem do Público toma partido: "Mais uma taxa contra quem cria riqueza".

Ora, custa a crer que estejamos em 2020 e a síntese do problema seja esta, depois de tudo o que sucedeu em Pedrógão e no fatídico domingo 15 de Outubro de 2017; depois da confirmação insofismável das alterações climáticas; e em plena crise australiana. Afinal, para o Público, o problema é ideológico...

Vamos aos números. As indústrias de base florestal - da madeira à cortiça, mobiliário e pasta de papel - valeram mais de nove mil milhões de euros de negócios em 2017, de acordo com os números da Direção Geral das Atividades Económicas. Os negócios da cortiça, papel e madeiras valem 10% das exportações portuguesas (quase seis mil milhões). Destas, a cortiça exportou em 2017 aproximadamente 800 milhões, valores idênticos ao papel e cartão, enquanto a pasta de papel se terá cifrado pelos 400 milhões.

Importante para o país? Muitíssimo. Mas o impacto no território não pode ser grátis. E, além disso, as diferenças entre os negócios são óbvias, facto que a nova taxa tem de levar em conta.

O sobreiro (cortiça), por exemplo, é uma espécie mediterrânica, que favorece o território e o ecossistema, e nos faz exportar altíssimo valor acrescentado em equilíbrio com a natureza.

Pelo contrário, o eucaliptal, como espécie exótica, ocupa o território, mas é um deserto de árvores onde não há biodiversidade nem uma cadeia trófica contínua. Os negócios em redor dos seus produtos são meramente oportunísticos - continuarão a ser produzidos enquanto a terra tiver minerais e houver água para o eucalipto crescer. E depois deixarão um gigantesco território improdutivo para décadas.

Já a fileira do pinhal tem riscos de incêndio muito idênticos ao do eucaliptal mas, pelo menos, o pinheiro é uma árvore que se integra na nossa paisagem natural, ainda que todas as monoculturas sejam em si mesmas um perigo.

Regressemos à "taxa das celuloses". Em conjunto, a Proteção Civil custa 350 milhões de euros por ano e é paga apenas pelos impostos de todos os portugueses através do Orçamento de Estado.

Questão: as indústrias altamente rentáveis não podem contribuir com uma pequena margem dos seus resultados para a regeneração do território? É esta a base lógica da taxa: o território só arde com esta intensidade e frequência porque estamos perante vastíssimas extensões de monoculturas de eucalipto (e pinheiro). Não fosse a sucessão de terrenos com as mesmas espécies arbóreas e os fogos não teriam este alcance destruidor.

Simplificando. Quem beneficia com este concentrado de matéria-prima barata e altamente inflamável ao longo do território? Estas indústrias, sobretudo as celuloses, cuja pegada ecológica é devastadora. Portanto, sejamos claros: é completamente errada a ideia de que esta é "Mais uma taxa contra quem cria riqueza". Esta é uma taxa que tenta minimizar o custo dos incêndios aos contribuintes e acrescentar prevenção e renaturalização ao território abandonado.

Além disso, o fator de risco destes negócios da floresta só está a correr por conta dos contribuintes. Já os lucros estão disseminados nestas empresas cotadas em Bolsa cujos resultados vão para acionistas anónimos a quem mais 1% (ou 3 ou 5%) de lucros não fará substancial diferença.

Esta nova taxa beneficiaria o Fundo Florestal Permanente com a missão de instalar no território o mosaico que torne o país mais vivo e seguro: agricultura de montanha, pastagem, folhosas e resinosas autóctones (sobreiros, carvalhos, castanheiros, etc...). Ao mesmo tempo, o eucalipto - em vez de continuar a expandir-se - tem de aumentar a produtividade nos terrenos onde já está plantado.

Entretanto, o que se passa com o Fundo Florestal Permanente que Capoulas Santos não financiou melhor? O Plano de Atividades de 2019 mostra que o orçamento se limitou a 62 milhões de euros. De onde vem o dinheiro? As duas principais rubricas são "28 milhões de impostos sobre produtos petrolíferos e energéticos" - ou seja, de todos os portugueses que compram combustíveis - e "15 milhões do Fundo de Solidariedade da União Europeia".

Como é claríssimo, este dinheiro é quase zero. Portanto, se não são as indústrias a pagar um verdadeiro fundo para a floresta (já para não falar da Proteção Civil), então quem é?

As alterações climáticas não perdoam. Podemos continuar a falar das "limpezas do mato" ou dos corredores corta-fogo, e de mais e mais e mais meios de combate. Mas tudo isto é negar a evidência: os fenómenos extremos estão cada vez menos à escala humana. Se mantemos dezenas de quilómetros de eucaliptais e pinheirais sucessivos, estamos a promover autoestradas de fogo. Chegou a hora de nos salvarmos coletivamente. Ou não?

Notas extra: calcula-se que já morreram 28 pessoas na Austrália e perto de mil milhões de animais. Mil milhões.
Na Califórnia é o caos, sistematicamente.
A floresta ardeu em França, em 2019, como já não se via há muito tempo.
E nós, por cá, discutimos "amnésias selectivas".
Enquanto só morriam bombeiros em Portugal, ninguém acreditou no desastre - era má preparação... Entretanto morreram 115 pessoas em 2017 e mesmo assim, três anos depois, esta continua a ser uma luta ideológica... E a realidade? Tornou-se invisível?
De facto, as grandes corporações deste negócio já mandam muito mais do que supúnhamos. Conseguem pintar de cor-de-rosa até as chamas do inferno.

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O deputado Ascenso Simões e as celuloses

Se o senhor deputado quer efectivamente assumir um acto de coragem, convido-o publicamente a visitar comigo várias áreas do ainda designado Pinhal Interior.

Paulo Pimenta de Castro 20 de Janeiro de 2020, 5:30, Público 

Tudo indica que o deputado Ascenso Simões irá desrespeitar a disciplina de voto no seu grupo parlamentar, na votação do Orçamento do Estado. A ocorrer, será um acto de coragem? Longe disso. Podemos classificá-lo com recurso a outros termos.

Taxas sobre as celuloses e outras indústrias de base florestal não são novidade. Em 1972 foram estabelecidas para financiar uma entidade reguladora sectorial, o Instituto dos Produtos Florestais. Este organismo viria a ser extinto no final da década de 80, altura a partir da qual o Estado deixou os mercados funcionarem em roda livre. Actualmente, com um sector industrial fortemente concentrado e uma produção excessivamente pulverizada, os mercados funcionam em concorrência imperfeita. Na fileira do eucalipto, o mercado de rolaria para celulose é fortemente dominado por um duopólio industrial. Duopólio que determina unilateralmente os preços a pagar à produção, contando com a total omissão do Estado. Se a imperfeição no funcionamento dos mercados afectasse apenas produtores e industriais já seria grave. Todavia, o pior é que atinge o território e, mais grave, as suas populações. Incluindo as urbanas. Os incêndios propagam-se cada vez mais pelas plantações de eucalipto e, nestas, as pragas e as doenças proliferam exponencialmente. A política de preços vigente, com a omissão do Estado, determina o tipo de gestão e esta não acondiciona responsavelmente a contenção dos riscos.

Mas o caso citado não foi o único a envolver a cobrança de taxas às celuloses. Uma taxa, de 50 escudos por metro cúbico, era base num acordo estabelecido entre as celuloses e uma confederação da produção. Enquanto vigorou, havia um equilíbrio ao nível da formação do preço a pagar pela rolaria de eucalipto. Aqui também, o seu desaparecimento deixou desprotegida a produção. Basta acompanhar a evolução dos preços dessa rolaria de eucalipto desde 1995 a esta parte. Aliás, a influência determinante do factor preço é bem vincado numa entrevista de 28 de Junho último, realizada pelo PÚBLICO a um ex-quadro superior numa celulose e ex-secretário de Estado das Florestas.

A taxa que agora se pretende criar serve para recuperar partes do território, entre as quais as ocupadas por eucalipto. E são muitas, demasiadas para deixar essa recuperação apenas ao encargo dos contribuintes. A responsabilidade da expansão do eucaliptal de baixa qualidade e produtividade tem forte pendor nas celuloses. Justifica-se, por isso, a sua co-participação no esforço nacional de resgate dessas áreas de eucaliptal. O seu abandono ocorre em 2/3 da área ocupada por esta espécie exótica em Portugal. Assim se justifica que, havendo áreas com produtividades de mais de 20 metros cúbicos por hectare e ano, a média nacional se fique miseravelmente pelos seis metros cúbicos.

Esta área sob gestão de abandono é facilmente reconhecida por qualquer cidadão. Por exemplo, nas plantações após o primeiro ou cortes seguintes, onde se observa por cada pé mais de duas pernadas (tornou-se usual ver, por pé, pernadas queimadas juntas com outras que brotaram após os incêndios, numa mistura explosiva). Outra situação observável é quando num povoamento se observam eucaliptos misturados com pinheiros. Ou quando por baixo dos eucaliptos se encontra uma profusão de matos ou mesmo árvores, incluindo as acácias ou mesmo eucaliptos germinados após incêndio. Mas há ainda outros sinais de eucaliptal sob abandono.

Se o senhor deputado Ascenso Simões quer efectivamente assumir um acto de coragem, convido-o publicamente a visitar comigo várias áreas do ainda designado Pinhal Interior. Podemos começar em Abrantes, subir pela EN2 para Vila de Rei, seguir depois para a Sertã. Apanhar o IC6 para Pedrógão Grande, chegar a Castanheira de Pêra, percorrendo a área ardida em 2017, com paragem obrigatória em Nodeirinho. Podemos depois seguir pela A13 para a área ardida em Outubro desse ano. Constatar a forte germinação de eucaliptos e a sua invasão pós-incêndios de áreas antes não ocupadas por esta espécie. Aqui, as opções de concelhos a visitar são mais do que muitas. Não será difícil estabelecer um percurso.

Fica o desafio ao senhor deputado. Depois de analisarmos a imensidão de eucaliptal sob abandono, poderemos falar de taxas e da repartição de responsabilidades no resgate do território. Até podemos abordar os "erros" da governação em matéria de protecção civil ou de política florestal. Há todo um cardápio deles.

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